Dia da Terra: como se adaptar ao que já pode estar perdido?

No Dia da Terra, o Comitê Chico Mendes chama Anielise Campêlo, cientista ambiental e professora, para desvendar como repensar nosso modo de viver em meio a uma crise climática

“Se a gente explorar toda a nossa riqueza mineral que nós temos, se a gente explorar a riqueza madeireira que a gente tem e principalmente se a gente puder desmatar mais”, disse o prefeito de Rio Branco, Tião Bocalom (PL), no último dia 08 de abril em entrevista para a televisão em um evento em Brasília, após audiência com o vice-presidente Geraldo Alckmin, ao ser indagado sobre o que a capital do Acre esperar levar de discussão na COP30 (30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima), que será realizada em Belém (PA). 

Queimadas em Rio Branco, Acre. Foto: Sérgio Vale

Como se houvesse uma disputa entre a humanidade e a floresta, no Acre mata-se a vida verde que nos cerca em nome do chamado “progresso”. Foram 485 campos de futebol dizimados, equivalente a 3.467 hectares, segundo o relatório de monitoramento de áreas desmatadas no Acre, elaborado pela Amacro (região que abrange os estados do Acre, Amazonas e Rondônia), entre os anos de 2022 e 2024.

O resultado? Cada vez mais enfrentamos mudanças em nosso viver em sociedade, no primeiro trimestre de 2025, o nível do Rio Acre ultrapassou os 15 metros. Mais uma enchente, o que já virou rotina para os moradores de bairros da proximidade. A banalização de enfrentar tantas adversidades em pouco espaço de tempo, sem nomear culpados, é visível no cenário. O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) aponta que, no nosso estado, somente 42,1% da população urbana vive em ruas com pelo menos uma árvore, o menor índice do Brasil.

Diante desse cenário, as lutas e reivindicações tornam-se fundamentais. Como apontado pela ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, no programa Roda Viva, da TV Cultura, no último dia 10 de março, é urgente repensar a forma como lidamos com os recursos naturais ao nosso redor. Ela até cita como sem a Reserva Extrativista Chico Mendes e o seu cuidado com a floresta, não existiria Rio Acre. Chico Mendes morreu gritando essa verdade.

Ailton Krenak provoca, em seu livro “A Vida não é Útil” de 2020, justamente isso, quantas Terras serão consumidas até nos darmos conta que estamos no caminho errado? Em 1970, o senador estadunidense, Gaylord Nelson, organizou um protesto contra a morte da terra, que contou com a participação de 20 milhões de pessoas. Foi nesse dia que se instaurou a data global chamada de “Dia da Terra”. A partir dela, diversas leis foram criadas nos Estados Unidos e encorajaram um movimento global. 

Município de Brasileia debaixo d’água em 2024. Foto: Marcos Vicentti/Secom

Qual o nosso papel nisso tudo?

O Comitê Chico Mendes conversou Anielise Campêlo, cientista ambiental e professora, de Jaboatão, região metropolitana de Recife e integrante da Comissão Ambiental Jaboatão dos Guararapes (CAJG), formada por voluntários intergeracionais. O coletivo foi formado em 2020, atuando no território com questões socioambientais, e com pilares como a educação ambiental, o incentivo ao exercício da cidadania ativa por parte da população, o engajamento popular na construção de políticas públicas e também na fiscalização desse processo, além do incentivo à pesquisa científica, ao fortalecimento da ciência. Tudo cercado pela comunicação.

Anie fala sobre o contexto delicado que as comunidades do Norte e Nordeste encaram em um momento de desequilíbrio climático. Momento que já vinha sendo avisado e alardeado desde os tempos dos empates e, atualmente, é inserido em um cenário de disputas de narrativas.

“É uma coisa que eu sempre falo nas oficinas que a gente promove: sempre que a gente falava de mudança climática, a imagem que vinha era da calota polar derretendo, dos ursos polares ficando sem ter pra onde ir. E hoje não. Hoje a gente não só fala, as pessoas estão sentindo. Estão sentindo, de fato, essa crise climática acontecer”, conta.

Anielise faz parte da Comissão Ambiental Jaboatão dos Guararapes (CAJG). Foto: Tarcísio Augusto

Com locais que, ao mesmo tempo, sofrem com eventos climáticos de excesso de água e também com escassez hídrica — como em Rio Branco, em 2024, que ao mesmo tempo enfrentou seu maior desastre climático da história, em uma enchente que afetou centenas de milhares de pessoas, também teve um mês inteiro sob fumaça e rio Acre com quase 1 metro de profundidade.

“Porque, embora a gente saiba que as pessoas infelizmente estão passando por isso, a gente vive uma crise que transcende a questão climática. Ela perpassa questões sociais, culturais, políticas, né? E muitas vezes, o nosso discurso — e eu digo discurso no sentido positivo, não no sentido de só falar por falar — quando a gente traz pra comunidade a realidade, o que está acontecendo, e tenta apresentar propostas, construir soluções”, relembra a entrevistada.

Em 2022, quem passou por uma situação de extremos climáticos acentuados foi o território de Campêlo, que sofreu excesso de precipitação em sua região urbana. A professora relembra que tentava ajudar, solucionar, conectar pessoas, entender necessidades, e providenciar recursos, neste curto espaço de tempo, ainda lidando com o oportunismo político partidário.

Sensibilizar a sociedade tem se mostrado uma grande dificuldade. No entanto, observa-se um avanço gradual na mobilização de pessoas comprometidas com esse propósito. Trata-se de um processo contínuo, desenvolvido dia após dia, atividade após atividade, que tem possibilitado a ampliação do engajamento em iniciativas coletivas.

Desastres climáticos se tornam frequentes e mais graves em todo o Brasil. Foto: Kezio Araújo/Arquivo pessoal

A situação é urgente. Já seria esperado que houvesse um estágio mais avançado de enfrentamento - na Amazônia, já se fala de um processo de desertificação. Mas o desafio tem se intensificado em uma velocidade superior à prevista, exigindo respostas mais rápidas e eficazes.

“Então, a gente vive esse conflito: a dificuldade de conquistar as pessoas para esse processo. E a gente entende, sabe? A gente sabe que as pessoas precisam comer, precisam ter onde dormir. E muitas vezes elas pensam: "Quem vai me dar isso no final do dia? Essa ambientalista que está falando aqui, ou quem tá me oferecendo um recurso agora?", diz a cientista ambiental.

Como se adaptar ao que já pode estar perdido?

Quando se fala de se adaptar a este cenário, é fácil cair em um papo pessimista, pós-apocalíptico, como aponta a cientista ambiental. Entretanto, adaptar, nesse caso, é repensar, reestruturar, remodelar e readequar situações e contextos. E isso envolve várias esferas da vida. É sobre a política que a gente pratica no dia a dia. Aqui, entra o conceito de adaptação climática. Anielise explica o que é:

“Mas será que a gente tem que se adaptar ao que é ruim?”. Às vezes, a gente acaba distorcendo esse entendimento. Mas, na verdade, não é isso. A questão é que a gente precisa se adaptar ao que já está posto — ao que já está acontecendo. É sobre repensar quais são as nossas principais matérias-primas para produzir aquilo que a gente consome. Com o quê estamos produzindo os itens que usamos no cotidiano? Qual é a nossa matriz energética? De onde vem essa poluição? Quem são os maiores responsáveis por poluir?”, conta.

Em 2024, o estado do Acre enfrentou uma seca histórica. Foto: Juan Diaz/ContilNet

Para exemplificar: a entrevistada conta que estava participando da construção do Plano Municipal de Redução de Risco, elaborado pela Universidade Federal de Pernambuco, através de um projeto financiado pelo Governo Federal. Ela mora numa área de expansão urbana, uma zona de transição entre a cidade e o campo. A pavimentação das ruas de barro é uma demanda constante, pois causa incômodo e afeta a mobilidade. O desejo por melhorias é legítimo e compreensível. Por isso, o calçamento acaba se tornando uma ferramenta política forte, gerando debates e grandes expectativas.

“Durante uma oficina participativa do plano, eu trouxe uma questão: apesar de eu ser ribeirinha, de morar na beira do Rio Jaboatão, a nossa área aqui não sofre com alagamentos constantes. Enquanto Recife ou outros bairros de Jaboatão estão debaixo d’água, aqui a gente só lida com a lama — não alaga. E por que isso? Eu tenho quase certeza que é porque as ruas ainda não foram asfaltadas. E eu tentei argumentar isso durante a oficina. Mas foi um debate difícil. Muita gente reagiu: “Como é que você tá defendendo não asfaltar a rua? A gente passou a vida inteira querendo isso!”. E com razão — ninguém aguenta tanta lama”, relembra.

No Norte e no Nordeste, a luta segue firme para a combate à desinformação. Foto: Cedida

“O que a gente precisa é encontrar soluções que atendam essa necessidade, mas que respeitem o meio ambiente”, diz a professora.

A resposta, para Anielise, talvez seja pautar o asfalto permeável. Um tipo de pavimento que permita a infiltração da água, que respeite o ciclo natural do solo. Porque a demanda vai continuar existindo. 

Como falar disso?

“A comunicação disso com a sociedade civil é fundamental. Não se trata de só mostrar o problema, nem de apresentar uma solução que afaste as pessoas daquilo que elas almejam. É preciso construir uma alternativa com elas, que dialogue com os dois lados: com a necessidade real das pessoas e com o respeito ao território, à natureza. É isso que a gente precisa comunicar: ser propositivo, propor caminhos. Não é só apontar o problema, nem sugerir uma saída radical que afaste a comunidade. É construir com, é fazer junto”, declara a cientista ambiental.

A solução nasce da participação, ela faz sentido para a comunidade — e, consequentemente, respeita o território, a natureza e a vida.

“Uma coisa que eu venho falando — e recentemente vi uma fala da ministra Marina Silva que me fez pensar: "Nossa, parece que os pensamentos estão sincronizados". O pensamento das pessoas que estão nesse meio, nesse processo de ativismo, estão coordenados. Não dá mais para a gente pensar em soluções rasas. A gente está num momento em que decisões profundas, radicais, são necessárias”, pensa a entrevistada.

Para a professora, a solução está na comunicação. Foto: Cedida

A necessidade de participação ativa da sociedade civil nas decisões permanece fundamental. No entanto, é urgente adotar medidas radicais para frear e desacelerar o avanço da crise, já que seus efeitos são cada vez mais visíveis. Essas medidas exigem rupturas e mudanças profundas, ainda que não haja certeza de que a sociedade esteja preparada. 

“É necessário que eu pense ações aqui que sei que vão impactar vocês aí. Agir local, pensar globalmente. O que for decidido aqui vai impactar aí também. E precisamos ser muito certeiros ao sensibilizar as pessoas, especialmente no campo político. Não dá para fugir dessa questão, porque quem toma as decisões é quem está no poder, quem a gente elege”, finaliza Campêlo.

Sobre o Comitê Chico Mendes

Criado em 1988 por militantes, familiares e organizações da sociedade civil na noite do assassinato do líder seringueiro e sindicalista Chico Mendes, o Comitê Chico Mendes surgiu como guardião da história e legado. Até 2021, atuou como um movimento social, promovendo a Semana Chico Mendes e o Festival Jovens do Futuro.

Diante do desmonte da Política Nacional de Meio Ambiente, que afetou violentamente os territórios e suas populações, especialmente as Reservas Extrativistas, decidiu dar um passo estratégico para fortalecer sua atuação em prol do bem-estar social, ambiental, cultural e econômico das comunidades tradicionais.

Em maio de 2021, após um amplo processo de escuta e diálogo entre membros e parceiros, optou-se pela institucionalização do Comitê Chico Mendes. A decisão representou um marco na trajetória da organização, permitindo a implementação de projetos estruturados sem abrir mão da essência de resistência, expressa nas Semanas Chico Mendes, realizadas desde 1989, e no Festival Jovens do Futuro, promovido a partir de 2020.

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