Companheiras de luta de Chico encerram programação da Semana Chico Mendes no “Legado de Luz” em sua memória
Após falas, participantes do encontro colocaram velas e encheram as porongas de flores a caminho da estátua de Chico Mendes
Em conclusão da Semana Chico Mendes 2024, o “Legado de Luz - encontro em memória de Chico Mendes” aconteceu no domingo, 22, data do assassinato de Chico e fundação do Comitê que carrega seu legado. Karla Martins, articuladora do Comitê iniciou os trabalhos e apresentou o dispositivo formado por Raimunda Bezerra, Júlia Feitosa, Jane Vilas Boas - representando a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva -, Irmã Augusta de Oliveira e Clarice Batista.
“Mas este ano, especialmente, com a força desses pensamentos que movem muito a nossa diretora-presidente Ângela Mendes, ela começou a pensar que, toda vez que conversamos do empate e do Chico, dos companheiros e da luta, conversamos a partir das lembranças e memórias dos homens, como se não houvesse mulheres. O que é um enorme equívoco. Então, este ano, Ângela disse: vamos convidar mulheres que nos inspiraram, mulheres que conviveram com Chic”, descreve Martins.
Essas mulheres estavam juntas para lembrar que, além do próprio movimento do empate - havia um movimento de pessoas que eram uma forte rede de apoio a essa resistência nas florestas.
“Essas são pequenas lembranças ou pequenos fatos para que possamos, aos poucos, reconstruir essa história, colocando também as mulheres no lugar devido, esse lugar de luta e resistência que sempre existiu”, refletiu Karla sobre a importância de se ouvir essas histórias.
Confira alguns trechos dos depoimentos das mulheres presentes no Legado de Luz:
“Pouco antes de sua morte, nos encontramos no Centro de Defesa. Ele passou pela nossa salinha da Pastoral da Juventude, bebendo água e dizendo: "Leve meu abraço para as irmãs de Xapuri." Pouco depois, chegou a notícia de que ele havia sido assassinado. Aquilo nos marcou profundamente. A novena do Natal foi aberta com uma oração em memória do Chico Mendes. Ele nos deixou um legado de formação, missão e luta pela defesa da floresta e dos povos que nela vivem.
Hoje, refletindo sobre tudo isso, reconheço a importância de continuar essa missão. Chico Mendes deu a vida pela floresta, consciente dos riscos que corria. Ele não parou diante das ameaças. Seu exemplo nos motiva a seguir lutando, mantendo vivos seus ideais. Chico vive, e eu quero viver para continuar essa luta”.
Irmã Augusta de Oliveira
“Chico Mendes frequentava a Fundação com frequência, e perguntei se ele poderia me conceder uma entrevista. Ele não se fez de rogado, e, numa das vezes, apareceu por lá porque tinha algum assunto com minha chefe ou uma tia que conhecia a Lima. Preciso dizer que meu conhecimento sobre o Chico não foi de muito tempo; estive, em parte, ao seu lado ou tomamos cerveja juntos em vários encontros dentro da Fundação Cultural. Eu mais ouvia suas histórias e andanças.
Ele perguntava sobre o teatro, e eu contava, mas ouvia muito mais. O resultado disso foi que, na primeira vez que gravamos, o tempo de gravação foi de uma hora e meia. Essa gravação foi roubada ou perdida misteriosamente, mas lembro que a conversa foi tão tranquila, simples e à vontade que não havia nenhuma dificuldade; aquele tempo parecia até demais. Ele era receptivo e simpático, falava com calma e sem nenhuma preocupação com o tempo. Era impressionante como ele conversava sem pressa ou pressão de compromissos, sem se atrapalhar na conversa. Parecia que ele tinha todo o tempo do mundo para conversar.
Dois dias ou um pouco mais antes de morrer, ele passou na nossa sala do patrimônio, e eu não estava. Ele deixou um bilhete escrito: "Querida Clarice, passei aqui e você não estava. Um beijo, Chico." Na noite em que ele foi assassinado, eu estava com uma querida amiga, que tenho até hoje. Estávamos sentadas no antigo bairro Gaivota, na Getúlio Vargas, quando entrou no noticiário da rádio: "Acaba de ser assassinado em Xapuri o sindicalista Chico Mendes." Ficamos chocadas, e me deu uma tristeza profunda. Fomos para a casa dos meus pais, que fica próximo do bar, e lá eu não conseguia parar de chorar”.
Clarice Batista
“Mas é isso, eu acho que essa coroa vai ficar aqui, no lugar do fogo da luz, para as flores, para comemorar os 80 anos dessa pessoa especial que olhava para os jovens, dando a eles o mundo, dizendo que estava lutando porque estava construindo o futuro dessas pessoas. Ao mesmo tempo, ele sabia que viriam coisas difíceis e que só fazia sentido para ele existir se fosse com aquela casa lá em Xapuri. A última conversa que a Mariana se lembra de ter tido com ele foi muito difícil. Ela queria muito que ele ficasse na casa de alguém no Rio de Janeiro ou em São Paulo até encontrar uma solução, porque ele já havia pedido muita ajuda e proteção da Polícia Federal em todos os lugares.
[...] Acho que tudo isso traz um sentido de vida, significado, dignidade, e respeito pelos outros. São luzes que espero que permaneçam nos 80 anos da memória dele. Espero que os jovens de hoje possam beber dessa história, se responsabilizar, e ser o Chico do futuro. Vocês, que estão aqui hoje, são os herdeiros do Chico, mesmo que não o tenham conhecido. A Amazônia e o Brasil são hoje uma potência ambiental no mundo. O discurso que apresenta isso ao planeta é um legado imenso deixado por Chico Mendes. Quem está aqui hoje no Acre precisa entender que este estado, essa cidade de Xapuri, tem uma conexão com o planeta. Não podemos viver como se fôssemos apenas mais um lugarzinho no mundo; somos os guardiões da história dessas pessoas que nos projetam para o mundo”.
Jane Vilas Boas
“O Acre é um estado pequeno, mas de grandes pessoas, pessoas humildes que fazem grandes coisas. Pensando nesse referencial, Chico costumava falar sobre uma aliança que vai além dos povos das comunidades rurais e dos seringais. Ele sempre mencionava jornalistas, acadêmicos e outros que compunham essa rede de apoio. Chico adorava conversar na universidade, buscando cativar os estudantes, e muitas pessoas acompanharam seu trabalho aqui.
[...] Naquele contexto, muitos de nós ficamos no apoio, especialmente em Cachoeira, que durou 90 dias. Como alimentar 300 pessoas sem o apoio de um grupo comprometido? Muitos companheiros da universidade estavam envolvidos. Em situações como essas, o sindicato e outros apoiadores faziam a diferença, promovendo conversas e oferecendo suporte.
Lembro da aliança que foi formada, não uma aliança formal, mas uma união de fato. Professores da universidade como o Professor Carlos, Professor Edgar, Professor Eurico, entre outros, tiveram papéis importantes, mesmo aqueles que não podiam aparecer publicamente. Durante o período de abertura, como nas eleições diretas para reitor entre 1979 e 1980, essa junção de pessoas foi essencial. Foi uma aliança de muitos lugares e setores que, ao longo do tempo, ajudou a sustentar o movimento, especialmente após o assassinato de Chico Mendes. Essa união continua sendo um legado importante, mostrando que, mesmo em meio a desafios, é possível construir algo significativo com a força coletiva”.
Júlia Feitosa
“Um dia ele chegou em casa, e nesse dia, lembro-me bem, ele entrou direto. Minha casa era muito simples. Ele entrou pelo portão, passou pela sala e foi direto para o banheiro, deixando as portas abertas atrás dele, algo que eu sempre fazia questão de fechar quando ele estava lá. A gente tinha o costume de manter a porta fechada naquele pedaço, mas ele a deixou aberta e foi para o banheiro.
Ele me disse: "Ah, os caras vieram atrás de mim até aquela curva lá no sinal." Naquele momento, pensei em gritar com ele, e, para ser honesto, eu gritei. Falei: "Você tá doido? Deixou essas portas todas abertas! Por que não me avisou? E se você fez isso e te matou no banheiro? O que seria de nós?" Ele pediu desculpas, de verdade, e ficou bastante arrependido. Não havia como não desculpar, mas foi um susto grande.
Em outro momento difícil que passamos juntos, ele estava sendo muito perseguido de várias formas. Era uma pressão constante e pesada, que nos deixava preocupados o tempo todo”.
Raimunda Bezerra
Ao final do encontro, a presidenta do Comitê Chico Mendes, Angela Mendes, encerrou com umafala, destacando a importância da preservação ambiental e a continuidade do legado de Chico Mendes. Em suas palavras, Angela reforçou a necessidade de união e resistência frente aos desafios ambientais, convidando a todos a manterem viva a memória e os ideais de Chico no encontro. A Semana Chico Mendes, que reúne ativistas, acadêmicos e a comunidade local, é um momento de reflexão e mobilização, promovendo debates sobre justiça social e sustentabilidade.
Após o discurso de encerramento, os participantes, com velas e porongas repletas de flores, seguiram em uma caminhada simbólica até a estátua de Chico Mendes, situada na Praça da Revolução, no coração de Rio Branco. O ato, carregado de emoção, refletia um sentimento de esperança e renovação, marcando a culminação de dias de intensa troca de conhecimentos e experiências.